28 fevereiro 2005
Dissecando a reconciliação
A recente visita europeia do Presidente Bush assinala, segundo os intérpretes da coisa geopolítica uma reconciliação entre a “Europa” e os EUA. Se de facto é isso que está no horizonte falta em todas estas avaliações uma reflexão sobre o porquê.
A guerra contra o Iraque fez-se com grande urgência. A administração americana lançou-se na aventura de controlar os recursos energéticos iraquianos sem o habitual apoio do centro europeu, com os efeitos previsíveis de uma subida do preço do petróleo para chorudo lucro das petrolíferas baseadas em Londres e Houston. O desentendimento fez reemergir a discussão leninista das contradições entre centros imperialistas, e implodir as teses do Império de Negri e da Globalização como novos momentos históricos. Esquerda e direita esqueceram as litanias da “aldeia global” e reempregaram o arsenal de termos clássicos, originados no século XIX, de interesses chauvinistas, impérios e antagónicos projectos civilizadores. A análise leninista parecia justificada pela notada fragilidade economica americana, com défices comerciais endémicos e um dólar fraco, e pelo fortalecimento da economia centro europeia com o euro e o poderio industrial (alemão) em alta. A invasão americana preconizava uma via para sair do beco económico e a “Europa” nesta guerra económica fazia o que podia para impedir uma recuperação que lhe custaria caro em termos financeiros e no controlo dos mercados internacionais.
A reconciliação seria uma surpresa face à análise imperialista, já que o momento económico não mudou subtancialmente. Os EUA em aparência recuperam da crise mais rapidamente do que a “Europa” que enfrenta crescente desemprego, mas não há sinais de um resurgimento do gigante industrial e financeiro americano, pelo menos medido pelo euro que permanece em tendência de subida. Não há porquê para a reconciliação!
Quem é adepto da política como gestos de líderes e de jogos eleitorais, sem ligação a realidades de classe, especula que a reconciliação reflete a preocupação de Bush em limpar o seu nome da história. Quem é um pouco mais realista na análise, identifica uma tentativa americana em convencer a “Europa” a participar na “reconstrução” (realmente pilhagem) do Iraque. Mas neste último sentido não estamos perante uma reconciliação mas um adiar do confronto. EUA e “Europa” forjam uma trégua. Os centros imperialistas não exorcizaram o demónio da crise económica, e antevem a sua própria fraqueza para destruir o oponente. A história do capitalismo está suspensa, esperando um desenlace que está longe do controlo dos poderosos. O mundo está suspenso a ouvir o rodar da engrenagem da máquina.
24 fevereiro 2005
Formalismos partidários
Anda hoje pelas notícias a referência à reunião da Comissão Política do PS, onde Sócrates foi confirmado pelo partido como o escolhido para formar governo depois dos resultados de Domingo. Formalidade, entoam, de uma maneira mais ou menos vincada, os jornalistas. Esta interpretação leviana do que representa a reunião de ontem do PS acaba por ser um sinal da degenerescência desta coisa a que convencionámos chamar democracia.
A escolha pelo partido do membro que vai formar o governo é, de facto, hoje em dia, uma formalidade, mesmo dentro do PS que tem esta obrigação nos seus estatutos. Mas donde vem esta ideia idiota de fazer uma reunião numa noite, arrastando uma série de senhores importantes para fora do seu cadeirão junto à lareira? Tempos houve em que um acto eleitoral era mais do que uma corrida de caras e de simpatias, ou pelo menos, em que a coisa não era assim entendida. Votava-se num partido, num programa, numa linha política, e não na fotogenia ou nos dotes demagógicos do líder partidário. Portanto, quem ganhava as eleições eram realmente os partidos, não as personagens. Daí a necessidade do partido definir quem será o encarregado de formar governo.
Mas como as coisas não são assim, como a fulanização da vida política dá mais votos, mais audiências e maiores tiragens, entende-se que esse acto seja hoje encarado como apenas uma formalidade. Mas acaba por representar apenas mais um sinal de degenerescência desta coisa a que convencionámos chamar democracia.
Iwo Jima
Fui despertado para este post por um artigo de opinião num jornal americano. Numa referência à batalha de Iwo Jima, o autor queria relembrar à Europa a tenacidade e determinação do povo americano na luta pela liberdade. Foi uma batalha com cerca de 6,800 soldados americanos mortos, acima de 20,000 baixas de guerra (mortos, feridos, "fatiga de guerra"). Referência feita desta forma, pouco se pode discutir.
Mas olhando para trás, para o que foi Iwo Jima. Trata-se de uma pequena ilha japonesa, cerca de 20 quilómetros quadrados. Na altura era de importância estratégica vital pois pela sua localização, seria um posto de reabastecimento perfeito para os bombardeiros B29 fazerem escala entre ataques a solo japonês. Daí terem sido destacados 110,000 soldados americanos para conquistar um pedaço de terra no mar. Na ilha, encontravam-se pouco mais de 20,000 japoneses comandados pelo General Kuribayashi, cuja estratégia seria a de defender a ilha através do sub-solo, numa cadeia de túneis construida para o propósito. O objectivo seria de que cada japonês matasse 10 americanos antes da sua respectiva vez (assim se diz). A defesa da ilha era impossível, o importante seria levar a batalha a tal ponto que as baixas americanas servissem de elemento dissuador a futuros ataques em solo japonês. Dos soldados japoneses, apenas 1,803 foram capturados, todos os restantes foram mortos. Napalm, gás liquido, foram algumas das armas utilizados pelos americanos para contrariar a estratégia japonesa ("smoke them out").
E agora fica a minha pergunta. O que é que este episódio da História nos ensina sobre a tenacidade e determinação do povo americano? Que glórias ou elogios se podem retirar de uma ilha de 20 quilómetros quadrados coberta por mais de 27,000 cadáveres? Uma ilha cuja história de sangue só começou nesses dias, pois nos que se seguiram serviu de lar para os bombardeiros B29? Digam-me, por favor.
23 fevereiro 2005
Aqui há molho
O pânico parece ser de fabrico fácil. Ainda não tem uma semana a notícia de que uma (longa) lista de produtos alimentícios ingleses foram retirados das prateleiras por contaminação com um corante banido pela União Europeia e já se descobriu um primo português. Desta feita a ligação familiar é óbvia porque se trata de um “molho inglês” o que torna ainda mais imediata, a nível até semântico, a. perigosidade.
Estou dividido. Não sei se me queixe da negociata agro-alimentar que nos impinge químicos com consequências dubias em doses cavalares, se da rapidez com que risco se torna sem aparente reflexão em alerta grave e pânico. O que me divide é a ignorância do que se passa. O que se passa nos laboratórios universitários que fazem crescer tumores em ratinhos nutridos a corantes? O que se passa no fabrico destes molhos e refeicões metade-alimento e metade-plástico? O que se passa nas organizações que vigiam uns e outros e que tomam as decisões por nós?
Estou irremediavelmente cínico. Acho pânico tao súbito pouco sincero, senão mesmo forjado. De um lado, a necessidade das autoridades (in)competentes em mostrar vigilância quando esta é patentemente tão limitada. De outro, os meios de comunicação nacionais a esgravatar por notícias para encher noticiários, para tornar as notícias feitas lá fora, noticias cá para dentro.
22 fevereiro 2005
José Manuel Fernandes
José Manuel Fernandes, para quem não o conhece JMF, é o autor de inúmeras pérolas de análise política e social. Do trono de editor do Público ao baloiço de comentador político, JMF é um dos poucos “opinion makers” portugueses.
Quero compreender JMF. Quero compreender como os meios de comunicação adoptam o papel de formador ideológico para o sistema social vigente. Não é um problema simples perceber como indivíduos, formalmente com autonomia intelectual, são a fonte (generosa, no caso de JMF) dos mitos, tabus e monstros que com que se constrói uma falsa consciência.
Será que JMF recebe telefonemas frequentes da CIP, ou de outras falanges burguesas para mante-lo ao corrente dos últimos desenvolvimentos no edificio ideológico? Será que JMF adormece todos os dias a calcular mefistoficamente como confundir a malta e manter a decrépita mas lucrativa ordem capitalista? Nenhuma das explicações me parece credível, não porque sejam vias impossíveis, até há precedentes, mas porque são mecanismos de crise e de punho pesado. Esquecendo a Gestalt porque demasiado séria para uma farpa como esta, JMF apontou-me outra possibilidade, de natureza cognitiva.
Diagnostico em JMF a patologia de um hiperactivo, cuja breve descrição é alguém inatento, hiperactivo e impulsivo. JMF nas suas histéricas exortações pela reforma do sistema económico, apraz-lhe comparar Portugal tanto com a China como com a Finlandia. Só completa inatenção à realidade social portuguesa legitima comparações destas. JMF produz vacuidade às torrentes, com frequência diária oferece opiniões instantâneas, quando não se multiplica em mais opinários no Telejornal ou Jornal 2. JMF lança-se a julgar sem grande reflexão, num recente editorial sobre as eleições legislativas, exorta o PS a tomar “já, nos primeiros meses do seu mandato, as medidas difíceis que todos sabem serem necessarias”.
Apesar da convicção, da nervosa insistência em multiplicados testemunhos, JMF nunca chega a dizer nada. Proclama umas generalidades sobre “os tempos”, “o futuro”, sobre “o que todos sabemos”, mas estas são categorias vazias, marcadores simbólicos que sao definidos por outros autores, pelos políticos, pelos media globais de onde JMF destila as suas poucas ideias em tom minimalista. JMF é eficaz no seu papel de ideólogo, porque é anti-intelectual, e anti-reflexão, e satisfaz-se com umas tantas solenes generalidades. JMF é no universo médico um hiperactivo mas no universo popular bem mais económico em palavras, é um imbecil que trata os seus leitores como imbecis.
P.S. A única coisa que abona a favor de JMF e da sua capacidade intelectual, é que nas poupou de um arquivo das suas intervenções diárias no site do Público, como qualquer editor com estatura, se preza em manter.
21 fevereiro 2005
A vitória da direita
Divertindo-me hoje a "folhear" os blogs de direita, cheguei a duas conclusões. A primeira é talvez a mais publicitada, Paulo Portas ganhou estas eleições pela elegância e estadismo que demonstrou. clap clap clap, falhou tudo o que tinha apontado como objectivo (passo a citar):
1 - que nenhum partido tivesse maioria absoluta
2 - que o CDS ficasse acima dos 10%
3 - que o CDS fosse a terceira força política em Portugal
4 e adiante - podem ser retiradas logicamente das anteriores
e mesmo assim há quem ande a apregoar pela blogosfera a beleza e a compostura do acto. Percebo, por comparação a Santana Lopes não é difícil. As minhas condolências, se o acto mais memorável da noite foi a resignação do líder. (da mesma forma se o Trapattoni se demitir no final da época será relembrado por todos os benfiquistas pela sua compostura e correcção...)
O outro facto, foi a clara derrota do BE. Sim, pois apesar de quase terem triplicado o número de votos, deixaram escapar a possibilidade de governação. Suponho que o Louçã deverá neste ponto ser criticado pela falta do mesmo estadismo que o Paulo Portas demonstrou na noite passada.
20 fevereiro 2005
O direito ou o dever de votar
Durante as campanhas eleitorais dizem-nos que "o voto é um direito e um dever". Porquê, pergunto frequentemente.
A vertente do voto ser um direito é de fácil entendimento, sobretudo no caso português, em que os fantasmas do "Deus, Pátria e Família" ainda interferem com as noites de muito cidadão incauto. Nesse sentido, o voto é a afirmação da cidadania, de que todos são treinadores de bancada no estádio nacional. Ou seja, deveria representar um sinal político de que a nossa opinião interessa para alguma coisa, e que vai influenciar de alguma maneira o rendimento da equipa. Esta é a interpretação institucional, porque na prática sabemos que as vontades não são consideradas pelos eleitos, que as campanhas eleitorais são um chorilho de mentiras, de promessas vãs e demagógicas, e que quando se chega ao poder, o objectivo é continuar a satisfazer os interesses da classe dominante. Se olharmos também para a gritante escassez de cultura e de debate político na sociedade, em boa parte estimulado pelos próprios partidos e pela verborreia acéfala da comunicação social, sustentada com o aval do capital, percebemos como a coisa se tem mantido. Essa falta de cultura política acaba por negar completamente o "direito ao voto", porque não é um voto informado. Basta ver a qualidade do debate político desta campanha... Alguém sabe qual é a diferença entre o PS e o PSD, para além dos cartazes reles e da fotogenia dos candidatos?
Quanto ao voto ser um dever, acho que o conceito acaba por estar relacionado com o contrato social. Ao fazermos parte de uma sociedade, beneficiamos com ela, mas também temos responsabilidades. Uma delas será a de contribuir e validar a organização política, permitindo assim a manutenção desse contrato social. E se queremos alterar o contrato social, onde é que pomos a cruzinha? Foi com alguma curiosidade que vi paredes lisboetas forradas de cartazes a apelar a voto em branco, assinados por uma associação até então para mim desconhecida. A ideia deles é utilizar o voto em branco como um protesto contra a degenerescência do país. Independentemente de quem está por trás da campanha (pelo aspecto do site e dos cartazes, há €€€ em abundância), a utilização do voto como protesto não é uma ideia nova. O dever de votar acaba por implicar o dever de legitimar um modelo. No entanto, a abstenção é comummente vista pelos convenientes (coniventes?) analistas políticos da nossa praça como desinteresse (o que em si também é um problema), ou como um grau tão elevado de confiança no sistema, que o cidadão nem necessita de votar... Daí haver uma diferença entre a afirmação política da abstenção, e a afirmação feita por aqueles que se arrastam para fora da cama ao domingo, indo largar no caixote preto o voto rasurado, anulado, cheio de frases pouco confortáveis para o "Estado de Direita" ou simplesmente branco.
Portanto, sim, votar é um direito se houver informação e cultura política, não, votar não pode ser um dever se servir apenas para legitimar um modelo social que já provou os seus podres. O apelo que nos é feito em período eleitoral é assim um pedido para que digamos que tudo vai bem, e pensemos que a melhoria das nossas condições de vida chega apenas pela escolha do outro partido, e não pela radical rescisão do decrépito contrato social...
19 fevereiro 2005
Deus vos ouça...
O PP tem vindo a avisar em vários comícios do perigo que paira sobre o país, de eventualmente Portugal vir a ser dominado por forças de extrema-esquerda. Se ao menos fosse verdade...
Pose de Estado
Diz-se que Paulo Portas tem pose de Estado.
Mas o que é isso de “Pose de Estado”?
Ter pose, é como quem posa para uma foto, é fabricar uma imagem falsa. A sua lógica é terminar com o fluxo do tempo real e encerrá-lo num gelado jogo de pantomina. Posar um corpo de revista, de desejo. Posar um sorriso de romance, de mistério.
Pose de Estado é também fabricar uma imagem. Pose de Estado é estudado jogo de pantomina, mas o seu ideal nao é o objecto de desejo, nao é o eternizar do momento. Este ideal é a incarnação do Estado, e do abstracto poder.
Se houvesse coroa, Portas teria coroa, e manto, e ceptro. A República não pede tanto, pede só o tom da arrogância e da injustificada certeza. A República, simbolicamente nua, pede só que Portas empine o nariz, e fale de cima. Portas fala como se não fosse candidato mas como a constante incarnação do Estado.
É pose de pouca dura, dia 21, Portas acorda desincarnado.
17 fevereiro 2005
A ciência do arrefecimento global
No Guardian desta semana, o colunista George Monbiot notou com indignação a recusa do gigante económico Americano em subscrever o protocolo de Quioto. Monbiot ignora as fragilidades do “histórico” protocolo, que não prevê sancções e cujas metas estão muito abaixo do necessário para travar o actual descalabro climático. A denúncia do parco conteúdo de Quioto pode de facto parecer menor quando a maior economia do mundo recusa-se a dar ate este passo meramente simbólico.
A birra Americana tem muito de simbólico. O Grande Estado Americano, encabeçando a cruzada contra o tenebroso terrorismo global, nao permite ser forçado a assinar tratados, menos ainda a respeitar convenções, e jamais a ouvir o anárquico “mundo”. O centro Americano é neste discurso chauvinista, a confiante origem do sereno progresso e da segurança global.
A voz que se ouve na America é a daqueles que Monbiot identifica como os RP, os “loyalists” da Exxon Mobil. Monbiot indigna-se que estes deturpem a verdade de um debate científico resolvido – as consequências bíblicas do actual modelo de desenvolvimento económico. A indignação de Monbiot é também a sua surpresa, e ambas assentam na crença de que a ciência deve ser uma entidade purificada dos combates sociais. Mas crença raramente explica adequadamente a realidade. Os RPs da Exxon Mobil são certamente doutorados de Harvard, Princeton ou Stanford, são provavelmente competentes cientistas, com artigos publicados na Science, e tem para apoiar os seus argumentos boa ciência estatística. Os RPs da Exxon Mobil não mentem, nem a ciência que usam mente.
Debates em ciência não se resolvem com verdade, são provas de resistência onde “arte” do cientista e a política da sua comunidade são tão importantes como o arcano mundo real que os cientistas oscultam. O último a ficar de pé, aquele com mais aliados, vence. E neste, apesar de decrépito, capitalismo para lutar são precisas baterias de financiamento e poder económico. A ciência do século XXI é a do século XX, industrial e militar, social até ao tutano.
Não há nada de acientífico nesta “má ciência”, tem evidências, hipóteses, argumentos e conclusões. Esta “má ciência” também é conhecimento, a par com aquela que acusa a destruição do nosso ecosistema. É por isso que não se pode esperar que os debates científicos se resolvam por si para se decidir. Conhecimento informa mas não julga. A ciência não pode substituir a política. Não foi a “má ciência” da Exxon Mobil que fracassou Quioto, foi o capitalismo Americano que tomou a decisão (e que conjurou a ciência que a informa).
#@cistas de #$que%da
Desde que comecei a vaguear por blogosferas, artigos de opinião e bichos que tais, tem havido uma expressão recorrente que me mete espécie: "fascistas de esquerda". À primeira vista, e se me desligar dos milhentos textos que já li a usar as 3 queridas (o "de" também é importante e conta, senão mais parecia um comando numa parada militar mussolina), surge-me como... ovos com ananás.
A linguagem tem destas coisas, dá para muitas voltas e às vezes perde-se a meada (sinal disso é grande parte da blogosfera de esquerda já nem se chatear por emendar a expressão). É que por um lado um comunista, penso eu, corrijam-me se estiver enganado, segue um ideal comunista, o qual supostamente, isto também me disseram, tem como objectivo uma sociedade sem classes. Dai aquela história toda da ditadura do proletariado, nacionalizações, and soy on. Ora, tanto quanto sei, e isto também não é para acreditarem se não quiserem, um fascista é quem defende um sistema onde certas classes sociais são separadas e consideradas sobre um diferente sistema de direitos e regras, baseadas em qualidades superficiais, materiais ou de crença. Pronto, as características são muitas, mas acho que por agora chega.
Agora vem a minha dúvida, então um fascista de esquerda deve ser aquele que defende uma sociedade sem classes mas com uma classe,... não... não pode ter classes, entao deve ser... epá, eu sabia... tinha isto escrito aqui para algum lado. Tu tinhas a ditadura do proletariado mas com a defesa do direito à propriedade privada para um estrato... não, não era isto.
Bem, não estou a conseguir encaixar. Façamos assim, que tal evitar uma expressão infeliz que tanto limpa o significado grotesco da teoria fascista, como ao mesmo tempo retira conteúdo ideológico à expressão "de esquerda"? É que assim de repente parece que alguém anda a matar dois coelhos de uma cajadada. Vá lá, usem uma das vossas preferidas, já sei, uma daquelas da vossa infância! Como quando o avô chegava a casa chateado por aquele bando de porcos suados sem cultura andarem a invadir as suas propriedades. Ou quando o padre dava 30 minutos de missa sobre os males que corrompem o Homem, e os levam a espumar da boca e a rugir como animais, tomando o que "de direito não é delesch sch..."
P.S: eu por mim vou continuar a chamar "fascista" a quem o é de direito. Quem defende um modelo de sociedade hierarquizada, com direitos e privilégios especiais a uma classe superior. Não tentem viciar o Português que tanto estimam e defendem...
O saudoso fim de Rocky
Filmes banais por vezes ferem. A ferida está em serem instáveis, fatalmente incapazes de resolver as tensões que criam. Filmes concebidos para nos roubar do tempo, para nos furtar de nós mesmos, afinal despertam-nos. É esse o estranho caso de Rocky V.
Stallone investiu-se sem hesitação como o guerreiro mítico dos anos 80. Ele foi em John Rambo a incarnação do indomável poderio militar Americano, jamais derrotado, incapaz de recusar um novo combate se justo. Ele foi em Rocky Balboa o popular zé ninguem, que sobe a montanha do sucesso e privilégio a punhos de trabalho e coragem. Stallone foi, consciente ou nao, um sacerdote para os ferozes anos de Reagan e companheiros.
Em Rocky V vê-se no guerreiro cansaço, o cansaço de um Balboa reformado, e cansaço de Stallone que se esforça por concluir uma narrativa com tantos monótonos e tão pouco marcantes episódios. No genérico final Stallone celebra a genesis e o apocalipse da sua obra, cruzando imagens a preto e branco do primeiro e do último Rocky, sinal explícito de uma despedida.
O último dos Rockys quer fugir à década de zeloso combate pelo império neoliberal. O “império do mal” está em declínio. Rocky Balboa ganhou o combate com o monstruoso soviético em Rocky IV mas ficou ferido de morte, nao pode mais lutar (lesão cerebral, com mãos trémulas e referências a M.Ali). Stallone parece reconhecer que o herói depende do vilão, que sem essa “diferença” ele nao pode existir.
Rocky V não é a celebração da América das oportunidades, como o primeiro dos Rockys, no seu lugar reflecte sobre a frágil afluência de quem nasceu na miséria. O filme pode mesmo ser interpretado como uma crítica (ligeira) às negociatas dos empresários que transaccionam em carne humana. Mas esse elemento é menor, porque Stallone não quer análise social, não quer novos inimigos. Stallone contracena com o seu filho e coloca a “família” como pilar da história, o filme trata a redescoberta da família e a negociação do que é diferente e igual entre duas gerações. Stallone quer reconstruir a identidade do seu herói, quer reinvesti-lo da humanidade que lhe rejeitou na sua mitologia do guerreiro exemplar.
É para conseguir o milagre da ressureição de Rocky Balboa que Stallone ensaia o seu "regresso". As referências ao primeiro filme da série sao explícitas, Stallone a reconstruir o ponto de partida. A família Balboa é forçada a habitar o decrépito bairro onde tudo começou. O trabalhador e sofrido Rocky foi roubado do seu suor trasmutado ouro, a culpa é desses parasitas, que a classe trabalhadora Americana adora odiar, os seus advogados e contabilistas. Rocky volta a vestir o uniforme de pépe-chulo e a percorrer as ruas no compassado foxtrot do “espertalhão”.
A ferida, aquilo que denuncia o filme, surge nos gestos de regresso, porque o regresso é afinal impossível e torna-se meramente caricatural. Os maneirismos de Stallone em Rocky V são uma tentativa (fracassada) de emular os maneirismos do aclamado Rocky I. O milionário Stallone de 1990 já não consegue emular o indigente Stallone de 1976. O milagre da ressureição é-lhe negado porque Stallone nao pode enganar a História.
Eis a questão: Porque é que precisamos “imagiar” passados para encerrar as nossas narrativas? Porque temos de recorrer à caricatura do que fomos para nos conhecermos? E porque não concluir narrativas a imaginar futuros?
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