17 fevereiro 2005

 

O saudoso fim de Rocky

Filmes banais por vezes ferem. A ferida está em serem instáveis, fatalmente incapazes de resolver as tensões que criam. Filmes concebidos para nos roubar do tempo, para nos furtar de nós mesmos, afinal despertam-nos. É esse o estranho caso de Rocky V.

Stallone investiu-se sem hesitação como o guerreiro mítico dos anos 80. Ele foi em John Rambo a incarnação do indomável poderio militar Americano, jamais derrotado, incapaz de recusar um novo combate se justo. Ele foi em Rocky Balboa o popular zé ninguem, que sobe a montanha do sucesso e privilégio a punhos de trabalho e coragem. Stallone foi, consciente ou nao, um sacerdote para os ferozes anos de Reagan e companheiros.

Em Rocky V vê-se no guerreiro cansaço, o cansaço de um Balboa reformado, e cansaço de Stallone que se esforça por concluir uma narrativa com tantos monótonos e tão pouco marcantes episódios. No genérico final Stallone celebra a genesis e o apocalipse da sua obra, cruzando imagens a preto e branco do primeiro e do último Rocky, sinal explícito de uma despedida.

O último dos Rockys quer fugir à década de zeloso combate pelo império neoliberal. O “império do mal” está em declínio. Rocky Balboa ganhou o combate com o monstruoso soviético em Rocky IV mas ficou ferido de morte, nao pode mais lutar (lesão cerebral, com mãos trémulas e referências a M.Ali). Stallone parece reconhecer que o herói depende do vilão, que sem essa “diferença” ele nao pode existir.

Rocky V não é a celebração da América das oportunidades, como o primeiro dos Rockys, no seu lugar reflecte sobre a frágil afluência de quem nasceu na miséria. O filme pode mesmo ser interpretado como uma crítica (ligeira) às negociatas dos empresários que transaccionam em carne humana. Mas esse elemento é menor, porque Stallone não quer análise social, não quer novos inimigos. Stallone contracena com o seu filho e coloca a “família” como pilar da história, o filme trata a redescoberta da família e a negociação do que é diferente e igual entre duas gerações. Stallone quer reconstruir a identidade do seu herói, quer reinvesti-lo da humanidade que lhe rejeitou na sua mitologia do guerreiro exemplar.

É para conseguir o milagre da ressureição de Rocky Balboa que Stallone ensaia o seu "regresso". As referências ao primeiro filme da série sao explícitas, Stallone a reconstruir o ponto de partida. A família Balboa é forçada a habitar o decrépito bairro onde tudo começou. O trabalhador e sofrido Rocky foi roubado do seu suor trasmutado ouro, a culpa é desses parasitas, que a classe trabalhadora Americana adora odiar, os seus advogados e contabilistas. Rocky volta a vestir o uniforme de pépe-chulo e a percorrer as ruas no compassado foxtrot do “espertalhão”.

A ferida, aquilo que denuncia o filme, surge nos gestos de regresso, porque o regresso é afinal impossível e torna-se meramente caricatural. Os maneirismos de Stallone em Rocky V são uma tentativa (fracassada) de emular os maneirismos do aclamado Rocky I. O milionário Stallone de 1990 já não consegue emular o indigente Stallone de 1976. O milagre da ressureição é-lhe negado porque Stallone nao pode enganar a História.

Eis a questão: Porque é que precisamos “imagiar” passados para encerrar as nossas narrativas? Porque temos de recorrer à caricatura do que fomos para nos conhecermos? E porque não concluir narrativas a imaginar futuros?




   

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