16 janeiro 2008

 

Corpo de texto


O meu escritório é numa biblioteca. À minha esquerda está uma parede de ladrilhos branca. Um passo largo em cada direcção e um placa de metal cinzento fosco barra o meu movimento. Quando deixei de fumar, sem desculpa para sair da cela, deixei de ver o sol. A única janela, na porta, tem vista para os volumes da Revisa de Filologia Espanola e do Philologische Studien und Quellen.

Não me devo queixar. Tenho mais que muitos: a reclusa paz, o espaço de arrumação, o ar maciento que aquece no Inverno. A minha penitente existência é talvez um investimento para um escritório com vistas para o mar numa reforma equidistante.

As bibliotecas são entes vivos. Estes corredores animam-se com espécies raras. Um dos bibliotecários, altíssimo, curva-se no pescoço e balança um cabelo em sino branco, com barbas a condizer. Outro bibliotecário, tem um olhar curioso que esconde atrás dos livros que vai arrumando, parece-me que é gozado pelos alunos pouco mais novos que ele. Outro ainda, tem paralisia cerebral, arrasta o andar e tem ataques de fúria e frustração. Os utentes, estudantes sobretudo, passam pelos corredores sempre em pares ou grupos maiores, a encher o silêncio com interesses além do livro. São corpos que habitam um espaço que parece ser anti-corporal, feito de papel, capa e contra capa, e o aconchego do betão que preserva o texto. Aliás, creio estar nos pulmões deste ser, estes corredores são alveolares, com a intricada circulação de gente que aqui procura aérea o que não encontra no google.

A minha janela na porta também tem vista para este incerto corropio.



   

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