12 março 2007

 

Cansaço


É uma rábula de fila de autocarro. Entre ombros expectantes, um desconhecido resmunga que noutros tempos havia mais respeito. E se para bom entendedor meia palavra bastaria, pode ser que haja maus entendedores na companhia, pois o homem acrescenta “o que faz falta são dois ou três Salazares.” O comentário cai como uma pedra incómoda entre aquele congresso, e dá-se uma instintiva rotação de troncos, gestos de moderado nojo. Há sempre, se o grupo for grande, quem olhe o sujeito de frente com uma expressão de inseguro apoio.

É a saudade do passado, essa terra lendária onde as nascentes brotavam leite, o pão era de mel, e o vinho era rubro quente... Ou não. Não é tanto a saudade que vibra nestas vozes, é uma revolta cansada. Este sujeito quer menos voltar aos dias da tutela ditatorial, quer mais regressar aos seus 20 anos e à força nos braços para combater quem o agride - a rapina constante pelo poder público e privado que o atinge em longas esperas pelo autocarro.

Esta é a sociedade da alienação. Somos todos formalmente livres mas continuamos materialmente sem poder. Depois de desfeitos os nós com que a ditadura enlaçou o povo, o desenvolvimento social continuou congelado, regressivo, adiado. A única forma de viver as esperas pelo autocarro é sentir força no corpo para o combate (talvez ir a pé?). Quem cansou essa raiva resmunga rosários para o tempo voltar atrás.

Comments:
O mai grave é que quem hoje em dia profere afirmações desse tipo, foram os primeiros a combater a ditadura e agora a preferem...
Mas tambem se esquecem é que agora podem "desabafar" a sua ira, antigamente, no t"tempo da outra senhora", gramavam as cenas, e nem estrilhavam...
mai nada! :D
Abraços profanos!
 
Acho que é a primeira vez que vejo uma interpretação mais positivista deste tipo de comentários salazarentos. Digo positivista pois não cataloga quem as profere como fascista, direitolas, etc.

Também entendo que não é o universo todo destes desabafadores que se enquadra na tua descrição, mas creio que será ainda uma parte importante, mas não maioritária.

A liberdade que temos é de facto formal. Venha a força de lutar pela sua informalização, banalização, generalização.
 
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