14 fevereiro 2007
O julgamento (2)
A 11 de Fevereiro, o domínio da Igreja Católica sobre o Estado português foi referendado. Os votos do “sim” traçaram uma divisão no mapa cultural. De um lado ficou a sociedade civil, de direito penal, do outro a sociedade moral, a indústria religiosa. Afirmou-se que a moralidade não dita a lei.
Desde cedo, os comentadores internacionais notaram que o debate sobre a I.V.G. era um teste ao controlo que a Igreja Católica detem sobre as consciências e os corpos das mulheres. Mas para quem vivia a campanha a Igreja era: um espectro, uma sombra, um inominável. Dirigido pelos apelos à “serenidade” do PS, o “sim” engoliu a voz para não nomear o óbvio. Noticiou-se a campanha de intimidação e de medo da padralhada e das suas instituições instrumentalizadas, mas não se firmou uma denúncia.
Promete o PS com esta estratégia encerrar, passo a passo, o poder religioso em domínios cada vez menores de influência e privilégio. A política desculpa-se do confronto, ninguém tem que fazer nada, só esperar… O combate é substituído pela sedução da sociedade do consumo e do espectáculo que vai arruinando tranquilamente os valores arcaicos.
Esta retórica esconde um medo. O centro esquerda quer os votos dos católicos, e teme por pragmatismo, que enfrentando a Igreja motive votos à direita. Teme o combate com a Igreja porque ideologicamente, não sabe se desprender dessa disciplina moral. A ideologia deste país – a sacralização da família, o pudor sexual, o machismo bíblico, a apologia da moderação e do perdão, o temor à autoridade – tem uma raíz católica. A cultura nacional permanece encarcerada em óstia e água benta.
Depois de 48 anos de uma ditadura de regimento católico, e mais 32 anos de regime parlamentar, a voz anti-clerical permanece amordaçada. Não podemos aceitar a interpretação decorrente deste referendo, que a Igreja é tolerável se ficar de fora do poder legal. Não podemos deixar que esta divisão sirva para ocultar a sua importância e consequência no espaço público. Com ou sem despenalização, esses sequestradores das consciências chantageiam os seus adeptos com promessas de paraísos e ameaças de infernos. E continuam o seu negócio de sacar benefícios fiscais e propriedade imobiliária em troca de uma obra de caridade com que recrutam crentes. Esta corporação tentacular não é uma inócua vizinha, à margem da política, com quem podemos conviver.
Negligenciar o combate contra a Igreja Católica é aceitar a sua moralidade que envenena a nossa democracia. No momento em que as religiões globalmente recuperam protagonismo cultural e político, nós não podemos ser dóceis.
|
|
|
|