07 fevereiro 2007

 

Eu não sou leviana!


Independentemente do resultado de domingo, este debate deixou a nú o que se tem tentado esconder e evitado dizer – é que em Portugal julga-se que as mulheres são menos capazes que os homens e como tal devem ter menos direitos.

Isto é verdade para aqueles que vão votar não, mas o que doi é ver que também o é para alguns do sim. Ainda ontem ouvimos médicos e juristas na TV a dizer que com a despenalização do aborto não haverá mulheres a abortar por capricho, porque estarão lá os médicos para o impedir. A essas irresponsáveis eles dirão que não podem abortar. Quero que me digam quem são essas mulheres que decidem "porque sim"? Onde é que elas estão? É que eu não conheço nem uma.

Às vezes o machismo vem em formas mais encapotadas. Por exemplo, "aborto por uma questão de saúde, condições de vida, sim, mas por outra razão qualquer, isso não; porque o corpo é meu, a barriga é minha, nem pensar!". Nem pensar?! Porque não? É a reflexão dela, contra a opinião de outra pessoa qualquer. Porque haverá esse outro, normalmente ele, de decidir sobre um assunto dela? Desenganem-se! Sejam os abortos realizados no dia 12, já legais ou ainda clandestinos, uma coisa é certa: é a mulher que os decide. Tem sido assim na maior parte dos casos e vai continuar a ser.

Não quero com isto dizer que o resultado no referendo é indiferente. Claro que é importantissimo que o sim ganhe. Razões de saúde pública, direito de decisão sobre a sua vida e o seu futuro, acompanhamento físico e psicológico da mulher que interrompe a gravidez são fundamentais. Mas há que exigir mais. Há que exigir que elas sejam tratadas com respeito, como capazes e inteligentes e não como crianças, estúpidas e fúteis como tem vindo a ser feito há séculos e que nestes dias se tornou tão óbvio. Isto implica reconhecer que as razões que a mulher evoca são tão válidas como outro motivo qualquer e que nesta questão em particular, ela é capaz de decidir melhor do que ninguém. Este direito é nosso. E nem juízes, nem padres, médicos ou maridos se podem sobrepor.

Comments:
o questionamento da capacidade das mulheres para decidir tem-me recordado os tempos que nenhum de nós viveu em que a Igreja reconheceu que as mulheres têm alma.

Estas discussões sobre a decisão da mulher têm-me posto num papel que não julgava possível: o de explicar o que dava por adquirido, o de justificar o que devia ser óbvio.

De facto, ainda há muita gente neste país com esta mistura de modernidade e de medieval: por um lado, as mulheres têm deveres como qualquer cidadão, mas por outro os seus direitos não são postos em pé de igualdade.

Curiosidade: a Suécia aprovou a despenalização (ou será legalização? não tenho a certeza) do aborto até às 18 semanas a meio da década de 70. O Partido Democrata Cristão do burgo foi na altura o maior opositor à aprovação da lei. Agora, esse mesmo partido propôs (ou fez aprovar, também não tenho a certeza) uma lei que permita a mulheres estrangeiras residentes fora da Suécia ir a este país fazerum aborto gratuitamente. Eu cá fico a contar os dias para que esta mudança de mentalidade se produza em Portugal.
 
Não concordo com esta posição, que me parece infundada. O aborto não é uma decisão unicamente pessoal, tem relações sociais e pela sociedade deve ser regulado. Assim, parece-me normal que a sociedade se queira impor às mulheres nesta decisão, não por serem mulheres, mas por ser um aborto. Não me parece que este seja (inequívocamente) mais um caso de opressão à mulher.
Pode-se fazer um paralelo com a eutanásia e o suicídio: a sociedade não reconhece ao indivíduo a capacidade de decidir unilateralmente sobre a sua vida (que não é só sua), excepto em casos humanamente fundamentados - a eutanásia. E não, não estou a falar da sociedade portuguesa ou de outra qualquer especificamente, estou a discutir os princípios de estruturação social em geral.
 
a decisão é pessoal. o contexto em que é feita pode ser regulado. mas a decisão é SEMPRE pessoal.
 
Isso não contesto, mas o texto original diz muito mais que isso.
 
Acho dúbia a utilidade de um conceito de “estruturação social em geral”. Haverá uma chave comum a todas as sociedades? Parece-me que o interessante no estudo sócio-historico é registar as diferenças, em vez de passar por cima do detalhe e apelar para uma qualquer essência genética do social.

A evidência é que o valor a vida não é valência absoluta e independente da sociedade e do seu tempo. Temos no nosso tempo, sociedades escandinavas sem pudor em relação ao suicídio, ao aborto ou a eutanásia. No outro extremo de valores temos Portugal, Irlanda, Polónia e Malta, e o denominador comum aqui é obviamente, a moralidade Católica com todas as suas cargas machistas. E temos ainda noutros tempos, mesmo neste nosso Mediterrâneo, sociedades que sancionavam o suicídio em variadas situações de conflito político. O valor a vida e um produto das sociedades, no plural, na sua especifica cultura.

Há evidências para a especificidade do aborto de hoje. Ao contrário do suicídio ou da eutanásia, o aborto tem uma moldura penal independente redigida pelo Parlamento, tem merecido uma actividade investigadora pela polícia e pelos tribunais, tem motivado repetidos actos públicos de condenação, humilhação e perseguição de quem o pratica. E quem são esses agentes que o praticam? Ao contrário do suicídio e da eutanásia que não tem género, esses objectos de escândalo só podem ser mulheres.
 
Oh Cabral, foi precisamente por haver uma miríade de visões sociais sobre a eutanásia e o suicídio que procurei generalizar a afirmação. Porque nas sociedades em que se aceita a eutanásia continua a fazer-se uma distinção do suícidio, e ambos estão sujeitos a escrutínio social. Do mesmo modo, no aborto tem de haver escrutínio social. Apesar de ser uma escolha pessoal da mulher (como bem disse a mystique), a legitimação da decisão é social, e isso nada tem a ver com machismo. Isso é uma caça às bruxas. E esta era a questão, e não qual o interesse do estudo socio-histórico ou a valência absoluta do valor da vida. Fiquei sem perceber como é que este teu comentário contribuiu para fazer avançar esta discussão, ou até qual a tua opinião sobre o texto inicial.
 
Concordo ABSOLUTAMENTE com o texto da Dolores.

E deixo por pontos a minha posição:

1. Não existe meta-social, temos é diferentes sociedades com diferentes quadros de valores.

2. Esse quadro de valores inclui a forma como a mulher é vista, como a sua autonomia é reconhecida ou negada, i.e. machismo ou não.

3. Em Portugal, há uma penalização simbólica e penal especial para o aborto, que não existe para o suicídio ou para a eutanásia.

4. O que torna o aborto tão perigoso para a sociedade portuguesa e seus valores é ser um exercício de desobediência da mulher, que age sobre o seu corpo. Isso o distingue e depois revela os machismos encapotados.

Não espero pela “sanção social”, porque me sugere que a sociedade está algures distante e por carta postal vai enviar uma “sanção” para a malta. Os consensos não existem, e não devemos esperar por eles, fiquemos antes na companhia da denúncia e do combate, porque a sociedade é aqui.

Aqueles na sociedade portuguesa que querem acabar com o machismo (até alguns homens talvez) devem: reconhecer o direito da mulher ao seu corpo e reconhecer que ela tem capacidade de decidir sem polícias (médicas ou penais) e sem tutores morais.
 
Mbeki,

No fundo estas a dizer que a decisao sobre a barriga dela e' feita por todos, que e' exactamente a posicao dos do nao. NÓS sociedade e' que DEIXAMOS as mulheres fazerem abortos, SE estivermos todos de acordo.

Nenhuma sociedade deve impor a uma mulher o que ela deve vestir ou como sao as suas relacoes sexuais ou quanto filhos tem. Isso e' mesmo muito machista!
 
mbeki,

quando digo que o contexto deve ser regulado, refiro-me particularmente ao modo como o aborto deve ser feito (condições médicas, o limite de tempo) e não se o aborto deve ou não ser feito!

Não me refiro à suposta autorização que a mulher deveria ter da sociedade para o fazer. nunca o teve e mesmo assim continuou-se a fazê-lo. Logo, de facto a mulher nunca precisou dessa permissão. Agora que é preciso regular para que o faça em condições, disso não tenho dúvidas. Assim como também não tenho dúvidas que é a uma sociedade machista e patriarcal que choca o facto de a mulher poder abortar por sua vontade ao mesmo tempo que essa mesma sociedade lhe dá as condições para tal.

O que se passa em toda esta discussão em Portugal é que a sociedade só está disposta a "autorizar" as mulheres a abortar legalmente se tiver um papel na decisão que ela toma.

Que ninguém julgue que as mulheres ficarão suspensas dessa aprovação para abortar.
 
Só uma clarificação de posição, porque já estou a ver que temos de discutir isto à volta de umas jolas.
Eu acho precisamente que "NÓS sociedade e' que DEIXAMOS as mulheres fazerem abortos, SE estivermos todos de acordo". Mas a partir do momento em que o aborto é legal, e são dadas as condições para o fazer, a decisão é da mulher, sem intervenções de "polícias (médicas ou penais) e sem tutores morais". O que eu digo é que o processo de legalização/legitimação do aborto é social, e não da mulher. A partir daí sim, a barriga é da mulher. Quando é que temos jolas para berrarmos à volta disto?
 
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