11 janeiro 2007

 

O povo não é sereno


Ontem, o primeiro-ministro fez duas afirmações à comunicação social. A primeira, em resposta aos jornalistas, garantia o seu contributo à campanha do “Sim” no referendo, mas acrescentava que o faria sem prejuízo para as suas responsabilidades governativas. Quer o Sócrates garantir ao país que compreende que referendos são interesses menores, que não entram nos cálculos da governação nacional, a dos negócios da China e da redução do défice. Para o nosso líder, há os referendos, e as coisas das mulheres, e há as governações e as coisas dos ministros.

De seguida, Sócrates fez um apelo à moderação e serenidade no debate referendário. Esta é a gaguejada mensagem com que todos os papagaios do partido socialista começam a sua cantiga. Dizem que temos que permanecer calmos, pacientes, e evitar as posições estremadas. Quem esteve envolvido no primeiro referendo e agora vê a procissão deste a passar, percebe que a posição estremada a evitar é: “o corpo é nosso!”

A violência com que este país resiste ao direito da mulher ao seu corpo é medida do seu moralismo de hóstia e testoterona. Neste país o corpo não é das mulheres. O corpo da filha é do pai, que está no seu direito de lhe dispensar uns tabefes. Depois a filha casa e o corpo é do marido, sempre às ordens do seu sémen. O corpo da mulher depois é dos filhos que lhe nascem sem que ela os escolha. E o ciclo conclui quando o corpo da mulher regressa aos pais, como a enfermeira sem folgas que socorre o vazio do Estado Providência.

Na cultura deste país, a mulher e o seu corpo são colectivos. A liturgia é de que o corpo da mulher tem funções a cumprir que são maiores que ela: ela é a fonte da vida; ela é a assistência social. Ela é escrava. Os homens apressam-se a culpar as mulheres de individualismo ou egoísmo quando se atrevem a falar na primeira pessoa. A mulher existe só no plural. E é nesse plural que lhe roubam a voz.

O primeiro motivo para votar sim à despenalização é devolver o corpo às mulheres.

Comments:
Viva,

Não estou de acordo que o que esteja em questão neste referendo seja devolver o corpo às mulheres mas vou manter o meu silêncio sobre o assunto.

Sou muito céptico quanto à utilidade dos referendos em geral porque raramente há uma discussão séria, apartidária e sem fundamentalismos.

Quanto ao PM percebo a sua preocupação. Acho que foram os radicalismos que prejudicaram o "Sim" no último referendo. Não digo que o debate seja "morno" ou sem chama mas temos que evitar o extremismos de posição numa questão que é sempre subjectiva (científica, filosófica, religiosa, etc.).

Abraço,
 
Oh Ricardo, eu tambem "percebo" a posicao do PM. A questao e' o que se acha dela.

E que extremismo do sim e' esse de que estas a falar? Dizer que sim, a mulher tem todo o direito a decidir sobre a sua vida e sobre o seu corpo, e' ser-se extremo? Entao e os gajos que dizem – nao, nao podes abortar; nao, nao podes decidir -- esses sao o que?

As mulheres nao sao parideiras! Tem direito 'a escolha e a escolha so delas depende!
 
eu acho que votar SIM à despenalização é dar às pessoas o direito de decidir. é dar aos seres vivos o direito a uma vida digna, com qualidade. é evitar crianças que não são queridas aos pais, que crescem em orfanatos. é evitar um pai e uma mãe à força.

as mulheres não são parideiras! mas os oócitos não são fecundados por obra e graça do espírito santo como se quer fazer parecer de ambos os lados do SIM e do NÃO!

eu penso que um SIM à despenalização não é um sim ao aborto como meio contraceptivo e muito menos uma desresponsabilização dos potenciais futuros pais. é pelo contrário uma RESPONSABILIZAÇÃO dos potenciais futuros pais em ir avante ou não nessa questão tão séria - educar um filho!

penso que o que tem falhado desdo o ínicio é a falta de tolerância do SIM e do NÃO pelo lado oposto.

um SIM à despenalização é um SIM ao respeito pelo outro. é um SIM ao direito de escolher da Mulher e do Homem. é um SIM à oportunidade de uma Mulher poder abortar em condições de higiene e segurança, garantindo a saúde sua e de quem sabe de um possível outro filho/a.

não punhamos o peso da difícil decisão que deve ser a de fazer um aborto na Mulher. é uma decisão partilhada. difícil. e responsável.

SIM à despenalização, SIM a um direito partilhado de escolha, SIM à dignidade do Ser Humano.
 
lamento os erros ortográficos/gramaticais no meu post anterior!

-assim onde se lê: "garantindo a saúde sua e de quem sabe de um possível outro filho/a. " deve ler-se:"garantindo a sua saúde e a, de quem sabe, de um possível outro filho/a. "

- onde se lê:"punhamos" deve ler-se "ponhamos"

eventualmente terei dado mais erros mas estes foram os que me saltaram logo à vista!!
 
Dolores,

Quando falei que houve extremismos de parte a parte na última campanha para o referendo sobre a despenalização do aborto não me referia à "devolução" do corpo à mulher. Referia-me a todos os desvios à discussão central que ocorreram sempre que a direita resolvia agredir a esquerda e vice versa, sempre que os conservadores insultavam os liberais e vice versa, sempre que as palavras assassinos ou ignorantes vinham à tona. E tudo isto com a cereja em cima do bolo que foram as manifestações com camisolas com a seguinte frase estampada: "Eu já abortei" ou todas as imagens de fetos que invadiram as nossas casas. É tudo isto que não convém repetir.

Cumprimentos,
 
Minhoca,

Idealmente as decisoes seriam partilhadas por ambos, pelo homem e pela mulher, mas no pais em que vivemos, nao e' isso que acontece. Sao as mulheres que partilham as dificuldades de uma gravidez indesejada. Se tens uma filha que engravida aos 12 ou 13 anos, quem vai ao medico com ela e' a mae, a tia ou a madrinha. Nunca e' o namorado ou o pai da miúda. E se sao elas que partilham as dificuldades, tambem sao elas que tem direito a decidir.

Para alem disso, o acto de concepcao nao da ao homem o direito de decidir sobre o corpo feminino. O homem pode e deve participar nessa decisão dificil, mas a palavra final tem que ser da mulher.
 
ricardo,

se queres exemplos de extremismos do lado do não, estes são muitos no blogue do programa "sociedade civil" que ontem discutiu o referendo.

há para todos os gostos: desde chamarem assassinas às mulheres que já fizeram um aborto a dizerem que não há como amar deus para reconhecer o verdadeiro valor da vida, encontras de tudo.

Comparado com isto, dizer que o que está em causa é a mulher ganhar controlo sobre o seu próprio corpo é de uma moderação de santo.
 
esqueci-me de indicar o link: http://sociedade-civil.blogspot.com/2007/01/interrupo-voluntria-da-gravidez.html
 
Saiu hoje manchete no Público que o "sim" no referendo detem 60% das intenções de voto, contra 19% do "não" e 11% de indecisos.

Em destaque na página 2, lê-se uma nota que sublinha o que aqui temos discutido, transcrevo:

MAIORIA NÃO AUTORIZA IVG POR "DESEJO" DA MULHER

É uma das contradições dos resultados do questionário. Embora a maioria defenda o "sim" no referendo, são mais (45%) os que dizem não dever ser autorizada a IVG "quando a mãe não deseja ter um filho" do que os que acham que deveria ser autorizada (43%). De assinalar que, caso o "sim" vença, esta é uma possibilidade legal: ou seja, até às dez semanas, a mulher pode requerer uma IVG, se o desejar. A prova de alguma confusão sobre o que está em causa nesta consulta popular, entre os inquiridos, é ainda mais notória quando se percebe que do total de votantes no "sim" 24 por cento afirmou nao dever a IVG ser autorizada nessa situação.
 
Mas esta do "Na cultura deste país, a mulher e o seu corpo são colectivos" é um argumento liberal. Esta defesa do individualismo fica um bocado esquizofrénica neste blog, ou não? O aborto não precisa desse argumento para se justificar.
 
Enganas-te ao confundir liberal com libertário. O que aqui defendo é o individuo livre, não-alienado, o pilar do comunismo. O que fica mesmo mal no blog são moralismos, estatismos, e a apologia da alienação.
 
amigos... a ideia de que "o corpo é meu, faço o que quero e me apetece" é perigosa e, de facto não me parece que deva ser aí centralizada a questão da interrupção voluntária da gravidez. Somos todos responsáveis pelo bem-estar uns dos outros e acima de tudo, nos domínios dos comportamentos sexual, moral e ético, ninguém pode impor nada a ninguém.

A perspectiva individualista do corpo só vem introduzir desequilíbrio no debate: parece que a mulher aborta porque lhe apetece. "O corpo é meu" estabelece a linha de raciocíonio que mais é capaz de gerar controvérsia, porque não estamos a falar exclusivamente da mulher, mas também de um ente que, ainda que sem personalidade e sem ser vida autónoma, suscite de outros essa resposta.

As mulheres não abortam porque o "corpo é seu e porque lhes apetceu". O aborto é uma questão de saúde pública, de respeito pelas diferentes condições em que vivem as mulheres e da criação de condições para que todas e todos se coloquem em igualdade no acesso à saúde e cuidados médicos.

A mulher tem o direito a decidir sobre si própria e obviamente que esse é um dos aspectos centrais, mas não é aí que se situa a luta contra o "não".

A questão política por detrás do aborto não é a disputa pela posse do corpo da mulher e mesmo a disputa por essa posse, não se resume a si mesma.

O essencial é garantir que os pobres continuam a proliferar. Importa garantir o contingente de assalariados. Imaginem o que seria do Capitalismo se os pobres conseguissem de facto ter acesso a controlo sobre o planeamento familiar. Imaginem o que seria do Capitalismo se só os membros da pequena e grande burguesia, juntamente com o capitalista tivessem filhos...

as proporções têm de se manter: afinal de contas "quantos pobres são precisos para fazer um rico?"
 
Caro pedras contra canhoes,

A luta pelo direito dos proletarios a condicoes dignas de vida, faz-se pela luta de classes, nao pelo facto de os eliminarmos porque deixam de ter filhos. Portanto, nao misturemos alhos com bugalhos.

Tambem e' preciso ter cuidado com as palavras que se usam. Quando as mulheres abortam porque o corpo e' seu, nao o fazem porque "lhes apeteceu", fazem-no porque decidiram. Seja qual for a razao, as mulheres fazem abortos em consciencia, nao e' por apetites nem humores. E nao ha razoes mais validas que outras.

E' facil dizer-se que se e' a favor do aborto por uma questao de saude publica e igualdade de condicoes de vida. O que nao e' facil e' dar 'a mulher o direito em pleno de decidir.
 
é exactamante o que tem de se fazer: dar à mulher o direito de decidir. Mas não porque "o corpo é meu e faço dele o que quero". Antes porque a decisão é inveitavelmente sua.

tu é que misturaste coisas e foste buscar coisas que eu não escrevi.
alguma vez me leste que a libertação do proletariado tem relações com a proliferação biológica da mesma classe?
Isso é que é misturar.

O que não podemos negar é que a luta de classes se reveste de diversas formas e a ofensiva é una mas multifacetada. A classe dominante semprer utilizou a opressão da mulher como uma forma de oprimir o Homem. O homem, por seu turno, é utilizado enquanto instrumento dessa mesma classe, acabando por ser o próprio a executar essa opressão. A luta da emancipação da mulher é a luta da emancipação do Homem.

Não existe um preconceito patriarcal infundado, ou idealista. Hoje em dia, com a ajuda de um conjunto de igrejas e religiões, a opressão da mulher cumpre princípios básicos da opressão capitalista. Baixar o valor da mão-de-obra feminina e os direitos das mulheres é fundamental no quadro da subvalorização dos salários em termos gerais.

Sobre a relação entre aborto e luta de classes. a proibição balofa e bárbar da Interrupção Voluntária da Gravidez não pode ser dissociada das relações que se estabelecem entre as classes. O que está em causa é garantir a reprodução das classes trabalhadoras, a manutenção da proliferação de homens e mulheres que não têm outra saída que não a da venda da sua força de trabalho ou mesmo de virem a incorporar o lumpenproletariat. A existência de um contingente de pobres é hoje essencial para a manutenção da organização capitalista. são essencialmente a pobreza e o desemprego que permitem ao capitalismo utilizar da chantagem contra o proletariado e assim lhe vão permitindo também a exploração intensiva de mão-de-obra num gradiente crescente.

A lei actual está ao serviço dessa visão de uma sociedade que prolifera do lado do proletariado, mas que dá todas as condições à burguesia para planear a família, para abortar em condições de saúde dignas e para, quando assim entende, criar os seus filhos em condições de vida aceitáveis.
 
Depois de negares o eixo biológico da tua análise de classe, regressas com toda a convicção à ideia de na proibição da IVG "o que está em causa é garantir a reprodução das classes trabalhadoras, a manutenção da proliferação de homens e mulheres que não têm outra saída que não a da venda da sua força de trabalho..." Encurralas o direito a abortar numa espécie de política social, de reduzir o exército de reserva da burguesia. Outras sociedades mais abertas que a nossa, já venceram a batalha pelo direito a uma sexualidade informada e aborto livre, sem prejuízo para os lucros do capital.

Concordando na luta contra o capitalismo, não preciso espartilhá-la em mecânicas económicas. A emancipação feminina, mesmo na sua expressão cultural, tem múltiplas consequências progressistas, na tomada de consciência de classe e na combatividade social.

Esta tua parábola economicista tem um efeito imediato: serve para retirar do debate a mulher, que seja sobre ela, e que ela tenha a voz primeira. Demonstras a incapacidade de admitir que as mulheres podem ter razões delas para acabar com uma gravidez, e que têm todo o direito de o fazer.
 
jesus...
onde isto já vai.
como queiras. Se não admitem que a mulher é oprimida porque isso beneficia o capitalismo e que a proibição do aborto é um instrumento capital para oprimir e se me dizem que eu tiro a mulher e a sua capacidade de decidir do centro da questão, então o preconceito esta demasiadamente entranhado para ser possível conversar.

a emancipação feminina é a emancipação da humanidade! isso não significa que a mulher não deva ter plena liberdade, isso eu nem questiono.

a única coisa que queria evidenciar é o carácter de classe da política proibicionista e demonstrar que a luta pela despenalização vai muito além das gritarias feministas e acossadas do individualismo e do "corpo é meu".
 
Não preciso de preconceito quando tenho o pos-conceito do que escreves. Primeiro, reconheces que é central o direito às mulheres de decidirem, para desarmar o que eu disse antes. Mas concluis em tom feroz que a questão “vai muito além das gritarias feministas e acossadas do individualismo e do "corpo é meu".”

Pode haver decisão sobre IVG sem direito ao corpo? Então porque a resistência a este argumentário? Porque esta necessidade de ir além e de ridicularizar com o termo de “gritarias”? Não chega esta exigência? É menor? É menos social ou política? Digo com toda a convicção, e confirmação, que colocas a mulher em plano secundário para sublinhar as questões que entendes como nobres, as de classe. E conversando com um materialista, lembro que as classes têm corpos, sexualidades e emoções.
 
eu não reconheço nem deixo de reconhecer. o facto de a decisão ser da mulher e só a ela caber é para mim adquirido e é daí que parto. Resta saber se a proibição tem ou não matriz política.
resta saber se esse argumentário não é exactamente o que os partidários do "não" procuram, por ser tão facilmente ajustado ao individualismo.

A maior parte dos abortos clandestinos está relacionada com questões sociais e económicas. trata-se de uma questão que extravasa em muito a posse do corpo. Fosse esse o único pilar e nem sequer seria disctutível o número de semanas.

claro que posso estar errado, mas entendo que a minha forma de encarar este problema não diminui em nada o facto de considerar a mulher como centro da questão.
De facto, posso estar toldado pela minha visão de classe e com isso perder de vista algumas pontas de outras questões. de qualquer das formas, enriquecer-me-ei com esta discussão.

Positiva já. Já me pôs a pensar e a questionar.

um abraço
 
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