02 outubro 2006

 

Justiça médica


Nos primeiros dias de Agosto, um amigo pediu-me para o ajudar a marcar uma consulta de psiquiatria. Ele sofre de esquizofrenia há já muitos anos, mas nos últimos sete quase não vive, devido aos ataques de pânico que tem tão frequentemente.

Não sai de casa, porque tem medo. Não tem dinheiro, porque não trabalha. Não trabalha, porque não pode. Não limpa a casa, porque não consegue. Não tem dentes, porque com os medicamentos apodreceram. Vive do que os pais lhe dão. Já não vai ao médico há quatro anos. Quando um amigo vive assim, fazes qualquer coisa que ele te peça, e ele só me pediu para lhe marcar uma consulta médica.

1.
No procedimento normal, ele teria que ir ao posto, marcar consulta com o médico de família, o qual enviaria uma carta para o Hospital de Santa Maria. Aí, juntamente com outros milhares de cartas enviadas de todo o país, o pedido seria avaliado e dependendo da urgência e disponibilidade marcariam uma consulta.

Dada a demora inerente a tudo o que acontece e não acontece neste país, o número de cartas envolvidas e a sucessão de consultas, decidi recorrer, àquilo que sempre achei funcionar bem em Portugal - a cunha - e tentei marcar uma consulta em Santa Maria através de um médico que conheço. Disse-me logo que sim, que ia tentar e para eu lhe voltar a ligar na segunda-feira, e depois na sexta, e depois na quarta seguinte e assim por diante, durante três semanas! A questão, disse-me depois, é que os médicos já não querem ver esquizofrénicos, é complicado, difícil e só dá chatices. Preferem tratar de depressões, bem mais fáceis de seguir. Tentei outro médico e já estava a ver que se passava o mesmo, até que uma semana depois lá apareceu uma luzinha ao fundo do túnel. Conseguimos uma consulta, o meu amigo vai ser visto no final de Outubro. Um mês para se conseguir marcar, outro até ser visto. É assim.

2.
Enquanto esta caminhada no escuro se passava, outro túnel ainda mais escuro se seguia - tentar perceber em que situação estava o pedido de rendimento de invalidez da segurança social. Uma vez que telefonemas, emails ou cartas não existem para a segurança social, fui lá directamente. Ao fim de três horas de espera a senhora disse que estava tudo tratado: o pedido tinha sido feito em Janeiro de 2005, uma assistente social e um psicólogo já o tinham ido ver a casa para uma entrevista e avaliação da situação em finais de 2005. Só faltava o relatório da assistente social. "E já lhe pediram?", "Não, estamos à espera". Telefono para a assistente social, que me diz ter enviado o relatório em Fevereiro deste ano, se a segurança social não recebeu, tem que pedir segunda via. Basicamente, dou por mim a ouvir que a segurança social não faz pedidos enquanto não receber a primeira cópia e a assistente a dizer que não re-envia porque não lhe foi pedido segunda via. Eu é que já estava a ficar esquizofrénica, quando resolvi ir falar com a directora dos serviços sociais. Uma das secretárias decide então tratar do assunto e falar à assistente social. Agradeci que o fizesse com brevidade, porque o meu amigo está há anos à espera, ao que ela me diz friamente: "Não se preocupe, o Sr. ainda é novo, tem muito tempo para receber o subsídio".

Como ele próprio diz "vivo numa prisão domiciliária, sem ter cometido crime nenhum". Os médicos e assistentes sociais impõem a pena.

Comments:
infelizmente, e como diz o josé mário branco, "mais vale rico e com saúde do que pobre e doente".

e isto não é humor negro.
 
Lol.. Estou-me a rir da expressão, mas não tem piada nenhuma..
A Saúde anda mesmo de cadeira de rodas...
 
pode-se comparar esta situação com a da terceira idade. se as pessoas de idade tiverem familiares que se interessem por elas, então sabem que não ficam à deriva entre médicos, enfermeiros e assistentes sociais no caso de ficarem doentes.

neste caso em particular, valem os amigos.
 
A sociedade abusa nas penas que impõe aos doentes mentais.Acho muito bem que te tenhas interessado por acudir a esse amigo e admiro-te por isso. É uma responsabilidade a que todos deviamos responder não só tendo em vista os amigos.As prisões a que um doente mental está exposto começam em si mesmo. São caixas, armários e gavetas que umas vezes se abrem, outras se fecham. A sociedade no seu conjunto tem que trabalhar para a sua inclusão num processo natural de afectividade.
 
Esta situação mostra bem como funciona o sistema de saúde neste tipo de sociedades. Actualmente verifica-se que já não é apenas o sistema no seu conjunto que funciona mal, mas os próprios profissionais-médicos,assistentes sociais e até a cunha.
 
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