05 maio 2006
A depressão Orwelliana
O século XX foi arquivo para inúmeras distopias, mas nenhuma preserva a popularidade de “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro” de George Orwell. Quando recentemente decidi ler a obra descobri que o texto não resiste ao peso da celebração que hoje se faz do pesadelo Orwelliano. Pelo trabalho da Endemol Produções, com os seus televisivos “reality shows,” o que atribuímos a Orwell não é o que este redigiu. O texto foi substituído pelo mito.
Nesta distopia imaginada, o regime de todos os pecados que o origina o mal do mundo é o socialismo totalitário, no livro com título de IngSoc [English Socialism]. Em posfácio à segunda guerra mundial, Orwell associou-se ao coro liberal que deu início à guerra-fria. O herói que batalha contra o monstro estatal toma de nome Winston Smith [Winston Churchill? Smith? o apelido mais comum em Inglaterra]. No elenco das agressões do totalitário IngSoc estão as crianças que atraiçoam os pais, o ódio que se sobrepõe ao amor, o discurso público que enevoa o pensamento com contradições, e a substituição da língua inglesa por um léxico empobrecido e de concepção estatal. (Muitos destes crimes não me chocam, e ressoam a queixas conservadoras - como se violar a autoridade tradicional da língua inglesa ou da lógica aristotélica fossem atentados à ordem cósmica.) A construção de Orwell define o poder usurpador como estatista, ilógico, e sustentado por sentimentos negativos (medo, ódio, raiva) que estupram a natureza humana. O totalitarismo só pode ser socialista.
Orwell enganou-se! O totalitarismo, aquele que de facto se realizou, a distopia viva, dispensa Big Brother. O poder para estar em todo o lado não tem centro, nem rosto, nem polícia política, e as câmaras de vigilância existem sem que se lhes de uso. Somos polícias, juízes e carrascos uns dos outros, e de nós mesmos. Mãos sobre o bolso da carteira temendo e odiando, e igualmente carne contra carne, amando inactivos e desesperados os que nos são vizinhos. A ideologia nunca está nos textos dos manuais escolares, nem nas câmaras de tortura de IngSoc. A ideologia está entrelinhas nos textos e no exemplar cultural. Aprendemos disciplina esquecendo que houve uma lição e confundimos o mundo que temos com natureza humana. Rejeitamos a possibilidade de uma alternativa, jamais somos chamados a uma verdadeira escolha, e a isto chamamos democracia.
O texto de Orwell alerta-nos para um futuro terrível de opressão, mais temível é a insidiosa opressão do presente. É contra o presente que devemos combater e não temer assombramentos do futuro.
Comments:
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Não tendo lido o livro, comento mais generalizações que pareces fazer.
Se concordo contigo com toda a forma de opressão difusa que existe. Especialmente,
"confundimos o mundo que temos com natureza humana. Rejeitamos a possibilidade de uma alternativa, jamais somos chamados a uma verdadeira escolha, e a isto chamamos democracia.". No entanto,
não quer dizer que negue a existência de opressões mais centralizadas. Por exemplo, os livros escolares têm sempre ideologia.
"O texto de Orwell alerta-nos para um futuro terrível de opressão, mais temível é a insidiosa opressão do presente. É contra o presente que devemos combater e não temer assombramentos do futuro."
Se é verdade que o presente deve ser a maior preocupação acho que ele está indissociavelmente ligado a um desejo de futuro, a caminhos e opções a tomar. Quanto ao medo, muitas se não todas as sociedades têm-no usado para manter o status quo.
Se concordo contigo com toda a forma de opressão difusa que existe. Especialmente,
"confundimos o mundo que temos com natureza humana. Rejeitamos a possibilidade de uma alternativa, jamais somos chamados a uma verdadeira escolha, e a isto chamamos democracia.". No entanto,
não quer dizer que negue a existência de opressões mais centralizadas. Por exemplo, os livros escolares têm sempre ideologia.
"O texto de Orwell alerta-nos para um futuro terrível de opressão, mais temível é a insidiosa opressão do presente. É contra o presente que devemos combater e não temer assombramentos do futuro."
Se é verdade que o presente deve ser a maior preocupação acho que ele está indissociavelmente ligado a um desejo de futuro, a caminhos e opções a tomar. Quanto ao medo, muitas se não todas as sociedades têm-no usado para manter o status quo.
Nao quis insinuar com o post que pensar o futuro seja indiferente. A utopia (como a distopia) move as pessoas, exemplos na historia nao nos faltam. Mas parece-me que sonhar um mundo ideal remoto em 20 ou 30 anos, talvez nao seja uma practica politicamente efectiva, talvez o seja cada vez menos... Pode ser um convite a alienacao do mundo como e' hoje, porque vamos pensando naquilo que e' tao longinquo que nem referencia directa tem com o presente.
Num materialismo e pragmatismo (talvez demasiado vulgar) prefiro que os olhos e a voz actuem sobre o presente, e se imaginarmos um futuro que seja aquele bem proximo.
Num materialismo e pragmatismo (talvez demasiado vulgar) prefiro que os olhos e a voz actuem sobre o presente, e se imaginarmos um futuro que seja aquele bem proximo.
Concordo em parte com o que dizes.
Ao mesmo tempo algumas pessoas poderão argumentar no mesmo sentido quase se faz a denúncia da crescente fascização da sociedade em que vivemos e de um outro big brother. Apesar das resistências irem encontrando outras alternativas, outras formas de networking, há sinais claros de aperto de cerco.
Samir
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Ao mesmo tempo algumas pessoas poderão argumentar no mesmo sentido quase se faz a denúncia da crescente fascização da sociedade em que vivemos e de um outro big brother. Apesar das resistências irem encontrando outras alternativas, outras formas de networking, há sinais claros de aperto de cerco.
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