21 março 2006

 

Propriedade intelectual da tortura


No Verão de 2003, primeiros meses da campanha iraquiana, o embaixador britânico no Uzbequistão, Craig Murray, foi afastado do posto. Meses após a demissão, os argumentos do governo de “conduta indecorosa” por parte do embaixador foram perdendo credibilidade, ao juntarem-se a outras mentiras com que a campanha EUA-RU contra o terrorismo se fora fazendo. Murray foi despedido por ter denunciado repetidamente, desde 2001, que a CIA estava a obter as suas informações sobre os movimentos islâmicos na região através da tortura de dissidentes. Embora o embaixador não dispusesse de provas da participação directa de agentes da CIA nas interrogações, conseguiu confirmação por parte dos seus colegas americanos de que as informações recebidas (e depois utilizadas nos memorandos do Departamento de Estado Americano) eram obtidas sob tortura pelas agências de segurança Uzbeques. Como bom funcionário publico, Murray lamenta que estes procedimentos distorcem a realidade política do Uzbequistão, catalogando de islâmico ou Al Quaedista forcas de oposição pró-ocidentais da simpatia do embaixador.

Mais interessante e consequente neste episódio é tratar-se de mais uma evidência de que a “guerra contra o terrorismo” assenta no terrorismo. É com o terror da tortura que a justificação falaciosa para o pânico global, de um islamismo omnipresente e expansionista se fabrica. E depois vemos os Jack Straws e as Condoleeza Rices deste mundo imaculados, com um sorrir de dentes alvos. Estes, quando interrogados sobre as origens das informações que perfazem os seus dossiers de guerra, não comentam ou respondem que “não instigam a tortura”. Com o re-frasear sofista da questão - não instigar não significa que se rejeite ou desaprove - julgam-se ilibados do crime.

A última táctica de intimidação a que o governo britânico recorre para calar Murray, é de reclamar todos os memorandos a que este teve acesso, copiou, e agora quer publicar em livro, como propriedade intelectual da Coroa Britânica. Estabelecendo uma analogia entre o funcionário público e um programador de software, o governo britânico argumenta que o saber adquirido na função diplomática deve pagar direitos de propriedade (chorudos e proibitivos) pré-publicação. Assim se pretende intimidar a editora do livro, o que parece estar a resultar numa dose substancial de auto-censura sobre a edição desta história. Trata-se da propriedade intelectual sobre o conhecimento da tortura, a privatização da verdade, porque a mentira não paga alfândega e compra-se e vende-se barata e sem taxas.



   

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