08 fevereiro 2006

 

Profecias de guerra


O “mistério da profecia” depende da ilusão de que o mundo se move por ordem metafísica, que além das gentes há forcas dirigindo a história. O profeta diz-se o intérprete do mundo que virá, revelando o que ninguém vislumbra. Quando o mundo anunciado se realiza os seus seguidores aplaudem o milagre e certificam-se que o mundo está como devia ser, por ordem maior.

Mas não é assim que a máquina profética funciona. O profeta não comunica com o meta-humano, não prevê o mundo que virá. O profeta, faz outra coisa completamente distinta, cria comunidades de crentes. A profecia tem a banal função de convencer, é um mundo imaginado em busca de crentes. A profecia uma vez convencendo torna-se motor da história, faz história, auto-concretiza-se.

Dados recentes eventos, poderia estar a pensar no profeta Maomé, ou talvez de profetas mais íntimos, como Cristo ou Isaías (mais não conheço). O profeta que denuncio não faz parte do cânon monoteísta, é Professor em Harvard e chama-se Samuel P. Huntington. A sua profecia, com que se rege o debate politico internacional, é o Choque de Civilizações.

A tese do Choque das Civilizações tem todos os elementos da profecia. É um mundo imaginado, porque não existe um confronto de valores civilizacionais, é real o consenso entre Ocidente e Oriente em ambições e valores. O capitalismo é total e uno. Contudo, a ficção convence, e convencendo leva a história consigo. Quem melhor convence é a elite Americana, era afinal para esta que o livro foi dirigido, para formular uma nova missão internacional para os EUA finda a Guerra Fria. Por imposição e jogo mediático, hoje somos nós convidados a ser islamófobos. Os árabes confundidos com o Islão, confundidos com o terrorismo islâmico, são representados como a negação da nossa identidade histórica - um ideal democrático burguês, um laicismo tímido, e o primado da liberdade económica sobre os direitos sociais e culturais. Que esta seja uma descrição incorrecta pouco importa, interessa é fazer acreditar na imaginação do profeta e dos seus acólitos. Porque acreditando vamos combatendo o mundo árabe como se de facto nos separasse algo de substancial. Porque acreditando e fazendo este combate, também eles acreditam que essa guerra é real, e também o mundo árabe se convence da metafísica do Professor de Harvard.

Comments:
É deveras perigosa essa visão de "Guerra de Civilizações", essa visão do mundo a "preto e branco"... Não se pode confundir islão com terrorismo, ou fazer generalizações do tipo muçulmano=terrorista. Tal só pode levar a uma islamofobia crescente...
Entrar nessa lógica de Guerra de Civilizações só vem servir o intento dos verdadeiros terroristas e instigadores do ódio

Excelente artigo A. Cabral
Um abraço
 
O que se torna mais assustador foi a rapidez com a que a tese do livro (simplificada para uso corrente) entrou no discurso popular. De JMF à rua, já ninguém duvida que estamos perante uma guerra civilizacional.

Mas bem mais perto que Samuel Huntington está a Oriana Fallaci, e os seus panfletos racistas (como La Rabbia e l'Orgoglio, de '01). Não são só os neo-cons americanos...O drama está aí.
 
Sao varios os dramas, o neo-cons ja nao e' so' um movimento americano, rapidamente se globalizou. Ha' um ano ou dois vi este livro nos escaparates. Descreve as expressoes mundiais do neo-conservadoriso e ate' tem um capitulo dedicado a Portugal redigido pelo sempre surpreendente Jose Carlos Espada.
 
O amigo Cabral escreve que "não existe um confronto de valores civilizacionais, é real o consenso entre Ocidente e Oriente em ambições e valores".

Pois eu, modestamente, discordo. Há de facto um conflito de valores. Já falei sobre ele mais do que uma vez. Os valores da velha Europa, Democracia, laicismo, tolerância, estão em grande parte ausentes dos países árabes. Comecemos então pelo princípio: Egipto: Ditadura disfarçada de Democracia. Arábia Saudita, Irão: sem comentários. Jordania: Monarquia. Emirados Árabes Unidos e restantes Quatares: mais oligarquias familiares. Síria, outro país sem comentários.

Todos estes países nunca, NUNCA, experimentaram sequer uma leve aragem de espírito crítico, de debate e confrontação aberta, enfim, de Democracia. Os regimes respectivos encorajam, com maior ou menor determinação, a escravidão de metade das suas populações pela outra. Se isto não representa de facto um choque, não direi civilazicional, mas pelo menos cultural, não sei o que representa.

Pode-se contudo argumentar que os maiores culpados por isso foram e são os líderes ocidentais, mais interessados em manter os seus interesses económicos com ditaduras corruptas do que incentivar a mudança cultural destas populações.
 
Com tao poucos comentarios nao vejo qual seja o teu argumento...

Em todos os casos listados temos economias de mercado, mais ou menos desenvolvidas. Temos tb em varios graus, liberdade de expressao. Temos por parte das populacoes ambicao de um regime politico mais democratico e com mais responsabilidades sociais. Se ditaduras existem, se monarquias se perpetuam nao serao por reflexo das populacoes. Afinal, sao portugueses que aqui conversam, e tivemos a mais longa ditadura europeia, e foi ha so' 30 anos.

Essa "civilizacao" esta assim tao longe, e' mesmo do outro lado do "mare nostrum".
 
O meu argumento é o seguinte: a Democracia não é um dado adquirido. É algo que se constroi ao longo do tempo. Nós pelo menos já levamos 30 anitos, e antes disso tivemos o nosso período revolucioário. Tivemos também a nossa geração de 70, tivemos o Herculano, o Eça. Temos, em Portugal, um crescente movimento para a igualdade entre os sexos. Inclusivamente, temos um crescente movimento para o fim da homofobia e aceitação das relações homossexuais como sendo totalmente normais. Nesses países nada disso se passa. O meu argumento é no sentido do que defendem os muçulmanos modernos: O mundo Islâmico tem de repensar a sua relação com as democracias seculares. Tem que se abrir, tem que pensar a diferença. Infelizmente, polarizado como o Mundo se apresenta, e com a falta de experiência cívica existente nos países listados, e não me digas o contrário porque no teu íntimo sabes que não é verdade, receio bem que isso seja uma missão impossível. Estou, por exemplo, muito pessimista em relação à "experiência" democrática no Iraque. Receio bem que aquilo resvale para mais uma "Democracia Religiosa", um conceito totalmente Orwelliano...
 
Eu no meu intimo estou muito bem obrigado.

Estamos mal se achas que o que se passa no Iraque e' uma experiencia democratica, essas com certeza acabam sempre da mesma maneira: mal! Felizmente!

Uma das caracteristicas que o Said aponta no "Orientalismo" e' o de negar que o Oriente tem historia, e quando se lhe reconhece alguma e' uma historia que seleciona as loucuras despoticas como as unicas significativas. A historia nasceu ali, nasceu no medio oriente, nos somos mais recentes.

Nao e' preciso pensar muito longe para desenterrar uma historia de nacionalismo arabe com aspectos progressistas. Andavam os portugueses a rezar o terco, e a limpar as retretes da base das Lajes e o Egipto organizava o movimento dos nao-alinhados junto da ONU. A revolucao iraniana teve de inicio uma forte componente comunista, que foi depois reprimida pelo Ayatolah mas que testemunha cosmopolitismo destas sociedades. E estes sao exemplos que me estao proximos, mais e melhores podiam ser dados com uma leitura rapida da historia do medio oriente. E' na base do mito que se constroi esta diferenca Este-Oeste.
 
Bem, eu coloquei experiencia entre aspas por alguma razao, caramba...

Quanto ao resto, a ver: nao nego a superioridade cultural do mundo islamico sobre o ocidente até à Renascença. Depois disso, e com muita pena minha, o Islão fechou. Em consequência foi colonizado. Hoje continua fechado. Penso em larga medida que a culpa é do Ocidente, que apoiou e continua a apoiar regimes corruptos nas zonas do Mundo islâmico, e é uma pena.

Agora, há dois aspectos que me parecem realmente importantes para esta matéria e que passaste em branco:

Situação da Mulher no Mundo Islâmico

Democracia Religiosa? São ou não conceitos impossíveis de conciliar?
 
E a democracia portuguesa e' laica? Recorde-se as beneces fiscais da concordata que nas suas varias versoes vem do tempo da outra senhora ate hoje. Recorde-se o ensino priviligiado da religiao catolica nas escolas, e a oposicao a educacao sexual. Recorde-se as resistencias montadas contra a liberalizacao do aborto, o matrimonio de homossexuais, ou o direito a adopcao por casais homossexuais. Recorde-se o patriarca com direito de antena na pascoa (ou sera no natal?) para benzer e pregar 'a nacao.

E se vamos falar da mulher no mundo islamico, quem bate recordes nesse criterio e' a Arabia Saudita que temos como um dos amigos do ocidente, um dos mais "civilizados".

Os argumentos culturais sao justificacao mas nao sao o que move este conflicto.
 
No blog o Quarto Poder muito recentemente tb abordaram como os "nossos" ideais democraticos estao muito aquem da realidade, o enfoque foi nos EUA, na sua Guantanamo, na ja rotineira violacao das liberdades que alegadamente sao essenciais ao nosso modelo de civilizacao.
 
Mas isso, Cabral, era precisamente o que eu estava a tentar passar quando disse que a democracia nao era um dado adquirido. A democracia e' um processo em constante construção, e a tentação totalitária está sempre presente. E, é claro, a democracia lusa deixa imenso a desejar quando, por exemplo, comparada com a do Reino Unido. De qualquer forma, do meu ponto de vista, ainda assim não é tão mau como o que se passa na Arabia Saudita ou outros países da zona. Como tu notas e bem, por culpa de líderes ocidentais irresponsáveis que apoiam essas oligarquias fechadas. No dia em que aquilo tudo explodir, depois que se queixem.
 
Eu gostava de saber qual a tolerância dos "democratas" europeus se as últimas maiores guerras fossem agressões aos seus vizinhos, por exemplo, Dinamarca e
Itália. Gostava de saber qual seria a reacção a serem retratados faz mais de 15 anos como os maus da fita (normalmente terroristas sem piedade, fanáticos, barbudos e sujos) em quase todas as fitas mainstream.

Para quem não saiba, os muçulmanos são pessoas normais. Infelizmente, são tão manipuláveis quanto as histéricas reacções (inclusivé da esquerda) "aos inaceitáveis actos de violência sobre embaixadas". A muitos deles nunca ouvi uma palavra aos milhares de mortos vítimas da "guerra ao terror".

Já agora não se esqueçam da riqueza cultural de outras civilizações. Dos Indianos aos Chineses. De África aos quase exterminados índios. Interessante como tantas vezes ainda se confunde riqueza com domínio ou mesmo "superioridade cultural".
 
Do RandomBlog02:

"Circula na internet um abaixo assinado, para o qual não faço o link pois não o subscrevo, mas que se pode chegar através do Abrupto ou do blog do Ivan Nunes. É tenebrosa esta reacção civilizacional a que assistimos. Esta ideia que o mundo se divide entre o Bem e o Mal e que só há um caminho certo: a nossa Liberdade e Democracia que se vive no Ocidente."
 
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