23 janeiro 2006

 

A análise do discurso


É notório que Cavaco Silva ganhou as eleições por ter seguido a estratégia comum na Europa desde os anos 60, dos "catch-all parties". Um discurso ambíguo, fraco em conteúdo, muito pouca (nenhuma?!) discussão de ideias políticas, de modo a conseguir apanhar o maior número de eleitores possível. E como a direita estava garantida, o desafio estava na esquerda. Daí o "Grândola Vila Morena" e outros episódios caricatos. Analisando o discurso de vitória de Cavaco, houve duas frases que se destacaram:

As pessoas serão o centro da minha atenção enquanto Presidente da República. Tenho sempre presente que são as pessoas o fim último de toda a actividade política.

Apanhei esta afirmação no rodapé de um qualquer canal televisivo, enquanto o discurso acontecia, mas onde só fora reproduzida a primeira frase. A necessidade de afirmar isto é para mim indiciador da decrepitude desta coisa a que convencionámos chamar democracia. É óbvio que Cavaco Silva tem razão, o objectivo da política é a coisa pública, o objectivo do Estado são as pessoas. Mas a pertinência que parece ter esta frase é de facto demonstrativa de qualquer coisa...fico sem saber se Cavaco o disse pensando que descobrira a pólvora, ou se era apenas discurso de ocasião, assumindo já a pose de estado e de maturidade política que se espera de um presidente;

Quero exercer este mandato com o empenhamento total no desenvolvimento do nosso País, no respeito pelos poderes constitucionais do Presidente da República. Desenvolvimento que, para mim só é económico para ser social.

Aqui aparece o neo-liberal. Já o pregador dominical, como alguém de má reputação chamou a Marcelo Rebelo de Sousa, havia passado esta ideia na noite das contagens. Este conceito de que a economia é o motor do desenvolvimento, e dela advém o bem-estar social como um sub-produto, continua a ser um dos pilares de legitimação do capitalismo, apesar da avalanche de dados que o desmentem. No caso do discurso de Cavaco, a ideia vem maquilhada com pó-de-arroz das melhores marcas, ao dizer que a obsessão económica tem apenas o objectivo do desenvolvimento social, e não a busca unilateral do lucro. Agora até a teoria da mão invisível leva maquilhagem...Mas o pregador dominical acrescentou ainda outro aspecto, a meu ver mais grave. Valorizando a formação económica de Cavaco para realçar as possibilidades de cooperação com o governo, ao mesmo tempo que minimizava as diferenças políticas, tentou passar a ideia de que a economia não é discutível, de que a economia não é resultado de ideologias políticas. O capitalismo funciona inquestionado e sem estar sujeito ao plebiscito, os governos limitam-se a gerir os danos colaterais. É esta a ideia mais reaccionária de todas. O modelo económico é uma opção política, e se Cavaco vai lidar bem com o governo, é porque na verdade as diferenças entre um e outro são poucas...

Comments:
Viva,

Quero destacar a última parte da tua análise!

Sou economista mas sei que a sociedade não se resume a isso. Precisamos de boas políticas económicas assim como precisamos de boas políticas sociais, culturais, arquitectónicas e por aí fora...

E acima de tudo a economia é a ciência das escolhas! Por isso é a mais permeável às ideologias e não é uma ciência exacta, é uma ciência social. Quem não percebe isso nem um bom economista pode ser!

Abraço,
 
Caro migdef, a resposta está no seu próprio comentário. A teoria neo-liberal defende, em coerência com o liberalismo de Adam Smith, que nos centremos na economia e na busca do bem-estar próprio, e o resto daí advirá. É a teoria da mão-invisível. Ora, assumir que o desenvolvimento económico não chega para garantir desenvolvimento social é precisamente o que eu digo, e os EUA são de facto um excelente exemplo. A economia é um instrumento político, e não um fim em si. Parece então que estamos de acordo e ambos discordamos do discurso de Cavaco Silva?
 
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