06 abril 2005

 

O filósofo na casa dos espelhos


Portugal Hoje – O Medo de Existir de José Gil prendeu-me entre as suas páginas. Não é um texto confortável, instiga e fere o corpo indolente do Portugal adormecido, e por isso merece louvor.

A dificuldade na leitura do texto e do argumento é a construção da “mentalidade” nacional, uma névoa branca. Construir uma psicologia nacional de fragmentos e impressões é uma tarefa com muitos espinhos, quando se encobrem conflitos e classes. Gil não se defende em evidências, arma-se com a sua fenomenologia e com pontuados exemplos (o último capítulo oferece-nos o contexto deste texto, o “mediatista” Santanismo). Gil não precisa se defender quando muito do que diz é globalmente aceite como o carácter luso – “os brandos costumes”, “o espertalhão”, “a burocracia”, “o mediatismo”, “a pobreza intelectual”… Esta matéria prima é duvidosa, parte mitológica, parte efeito disforme de um jogo de espelhos comandado pelo autor, com microscópios e telescópios. Gil tanto está par a par com o indivíduo e a sua psicologia, como a sobrevoar a história das ideias ou a sociologia política lusa. Esta teoria total é generosa, mas demasiado fácil e instável.

Portugal é um negativo filosófico, domínio do não-inscrição, “tudo se desenrola sem que os conflitos rebentem, sem que as consciências gritem, é porque tudo entra na impunidade do tempo – como se o tempo trouxesse, imediatamente, no presente, o esquecimento que está à vista, presente” (p.18); a “não existência de um espaço anónimo de devir das ideias e das obras” (p.31), ou seja um espaço publico. Para o filósofo mais do que para o cidadão isto é motivo de angústia, porque para pensar Portugal Gil tem de continuamente dobrar e quebrar conceitos, criar espaços onde colocar um país bizarramente suis generis. Portugal está em limbos, entre uma sociedade disciplinar e uma sociedade de controlo (á la Foucault e Deleuze), entre a modernidade e a pós modernidade.

Os dois termos mais fortes da análise são a pequenez nacional, “Circular por entre as pequenas coisas, investir nelas e logo desinvestir, conectar-se e a seguir desconectar-se dá a ilusão de movimento, de liberdade, de um desejar diverso, rico e múltiplo.”(p.52); e o medo, “O medo do rival, do colega, dos outros candidatos ao mesmo lugar, à carreira, ao emprego, quer dizer, o medo dos outros. Medo extraordinariamente agravado pela subavaliação que o indivíduo faz de si mesmo, julgando-se sempre abaixo do nível exigido, nunca à altura do que se lhe pede” (p.79). É sobretudo em torno destes dois elementos que se constrói a imagem da nossa “não-inscrição”. Inaugura-se com uma violência sublimada, herdada do Salazarismo, que corrói Portugal mas nunca se despoleta em conflito. Estamos solidamente reprimidos pelo medo crónico de tudo e todos acompanhando a nossa insegurança sobre os nossos poderes; a que se junta o habitual percorrer de espaços curtos formalmente felizes com o que é pequeno e banal. Jamais irrompemos em revolta e em celebração dos nossos poderes. Jamais rasgamos os confortáveis mas inócuos circuitos onde é impossível crescermos.

A fragilidade de Portugal Hoje é que embora açoite não nos pode mover. Portugal investe-se como essa imensa névoa, uma absurda osmose de medos, traumas e ritos, que só nos pode esmagar porque é-nos irremediavelmente “exterior”.Gil não desfia o seu discurso em manifesto ou programa. A crítica permanece divorciada de uma prática. Foucault ao denunciar a sociedade de controlo fazia-o para identificar os pontos de ruptura, e oferecer possibilidades de revolta e resistência. Gil admite que a resistência existe em Portugal mas não a nomeia e não a estuda. O texto desilude porque em vez de nos curar do trauma nacional talvez o acentue, estando nus perante a nossa impotência só podemos reconhecer que nada podemos fazer.

Para terminar, uma ironia muito nacional. Na contracapa, os habituais comentários dos famosos sobre o livro são unânimes em sublinhar as credenciais do filósofo e a garantir que dificuldade desta vez é marca de inteligência. O editor e o autor não querem que o leitor siga os seus imprevisíveis instintos. Afinal o filósofo é português, e também sofre de medo.



   

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